“Todas as histórias de vida são fascinantes. As pessoas nascem sob condições muito definidas e respondem a elas de múltiplas maneiras. Moldam-se em personagens sempre inéditas.
Se achamos nossa vida vazia e desinteressante, certamente nunca viajamos através da memória, buscando o nosso próprio percurso, nem nos empenhamos em contar uma história a nosso respeito.
Não falo de apanhar aqui e ali episódios vividos e relatá-los. Falo de narrar nossa existência com o objetivo de procurar, nela, aquele fio, escondido e insuspeito, que liga nossas vivência e lhes fornece sentido.
A partir do nosso nascimento, nossa história se estende para frente (até nossa morte) e para trás, antes mesmo de virmos ao mundo. Ela se apropria da história dos nossos antepassados, das heranças que nos deixaram (sonhos, valores, experiências, situação financeira e social...) e dos eventos da época em que nascemos.
A partir de então, vai se desdobrando, numa espécie de parceria com todos aqueles com quem convivemos, aqueles dos quais nos afastamos, com quem brigamos, os que esquecemos, os que admiramos...
Todos são cúmplices de nossos sucessos e fracassos, de nossos medos e idiossincrasias, de nossos valores e objetivos...
Mas ordenar todos os elementos que constituem nossas vidas é um trabalho lento e difícil. A narrativa de nossa história precisa de mais do que uma única versão.
Em geral, a primeira narrativa cumpre funções de sustentar a idéia que queremos ter de nós mesmo e de defender a personagem que acreditamos que somos em todas as ocasiões (vencedor, mártir, herói, vítima, perdedor, incompreendido...)
Grosso modo, a primeira história é sempre a versão conveniente para nós, montada inconscientemente por nós mesmo para justificar nossos atos e palavras. Ela é o relato do ator, que, de tão entrelaçado na trama de suas vivências, não pode olhar o panorama nem se ver de fato...
É muito difícil sermos atores, e, também, expectadores de nós mesmos. Como atores, agimos e sofremos, mas como expectadores, podemos nos ver, julgar e compreender as razões de nossos gestos e palavras.
Sermos expectadores e narradores de nós mesmos é o caminho único para conseguirmos dar um passo além em nossa existência: tornarmo-nos autores de nossa história.
Como autores, o que conquistamos é a chance de não mais nos deixarmos arrastar pelas contingências da vida. “Assim, nossa vida começa a ser propriamente, uma história.”
Dulce Critelli, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP